DSO: solução ou armadilha institucional para a geração distribuída?

A modernização da rede básica e da distribuição não se faz por meio de centralização disfarçada
DSO solução ou armadilha institucional para a geração distribuída
Foto: Canva

A proposta apresentada pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), com base no estudo realizado pela PSR e Daimon, de criação de um DSO (Distribution System Operator) controlado pelas distribuidoras, exige uma análise muito mais profunda do que a feita até agora nos fóruns técnicos.

A alegação de que a MMGD (micro e minigeração distribuída) representa um “problema” para a rede básica — especialmente no que tange à previsão de carga líquida — não pode ser tratada como justificativa suficiente para uma reconfiguração institucional do setor elétrico de tamanha magnitude.

Do ponto de vista da arquitetura regulatória e institucional, a proposta é profundamente centralizadora e reverte importantes avanços que vínhamos consolidando nos últimos anos rumo à descentralização, digitalização e democratização do setor elétrico.

Transferir para as distribuidoras a competência de atuar como DSOs, com poder de controle e despacho dos REDs (Recursos Energéticos Distribuídos), é uma decisão que gera conflitos de interesse evidentes — sobretudo porque essas mesmas distribuidoras concorrem, direta ou indiretamente, com soluções de geração distribuída.

Sob a ótica da operabilidade da rede básica, é correto afirmar que a previsibilidade da carga líquida tem se tornado mais complexa com o crescimento da GD, especialmente em regiões onde a penetração é elevada.

No entanto, não é tecnicamente aceitável atribuir unicamente à GD os desafios da previsibilidade e da estabilidade da rede. Esses desafios decorrem também da rigidez estrutural do modelo de planejamento, da falta de transparência nos dados da distribuição e da ausência de mecanismos eficientes de gestão ativa da demanda.

A solução proposta — um DSO operado pelas distribuidoras — contraria as melhores práticas internacionais, onde se observa, em geral, a criação de entidades independentes ou plataformas neutras, com regras claras de governança, interoperabilidade e o não discriminatório. É fundamental garantir que os REDs sejam integrados de forma transparente e competitiva ao sistema, e não subordinados a agentes incumbentes.

Do ponto de vista jurídico, a proposta apresenta riscos de desvio de finalidade regulatória, pois amplia competências das distribuidoras sem respaldo legal expresso. A Lei nº 14.300/2022 estabeleceu um marco para a geração distribuída com regras de transição, preservando direitos adquiridos e promovendo uma migração gradual para um modelo mais sustentável.

A criação de um DSO sob controle das distribuidoras pode implicar em intervenções indevidas nos direitos dos prosumidores, desestimulando a participação ativa do consumidor e gerando insegurança jurídica no setor.

Ademais, a ausência de debate mais amplo e transparente sobre os impactos econômicos e regulatórios dessa proposta é preocupante. O setor elétrico brasileiro vive um momento decisivo de reforma, com iniciativas legislativas e infralegais que pretendem redesenhar a lógica de comercialização, separação de lastro e energia, e abertura de mercado.

Nesse contexto, o DSO não pode ser construído como um atalho institucional para resolver falhas de governança e de planejamento da distribuição. Ao contrário do que estamos vendo no Brasil — onde a GD, especialmente a micro e minigeração distribuída (MMGD), vem sendo tratada como um “problema a ser controlado” — a experiência internacional mostra que os países mais avançados na transição energética têm adotado uma abordagem colaborativa e integradora no relacionamento entre os DSOs (Distribution System Operators) e os Recursos Energéticos Distribuídos (REDs).

Na Europa, por exemplo, países como Alemanha, Reino Unido, Espanha e Holanda vêm construindo há anos um modelo onde os DSOs são operadores independentes, neutros e tecnicamente capacitados para atuar como facilitadores do sistema, e não como agentes subordinados aos interesses de incumbentes. A geração distribuída nesses países é tratada como uma aliada da flexibilidade, da descarbonização e da eficiência da rede.

Em vez de enxergar o crescimento da GD como uma ameaça à previsibilidade da carga, os DSOs europeus adotam soluções como:

  • Integração com sistemas de gestão ativa da demanda (Active System Management);
  • Mercados locais de flexibilidade, onde o consumidor e o gerador distribuído são remunerados por serviços prestados à rede;
  • Plataformas digitais interoperáveis, com medição inteligente e dados íveis em tempo real;
  • E, principalmente, arranjos regulatórios que separam claramente o papel do operador do sistema daquele do comercializador/distribuidor, evitando conflitos de interesse.

Nos Estados Unidos, a tendência é semelhante. Vários estados estão adotando a figura do Distribution System Platform Provider (DSPP), como em Nova York, onde a GD é incentivada como parte de uma visão mais ampla de modernização da rede, conhecida como REV – Reforming the Energy Vision.

Já no Brasil, o estudo apresentado pelo ONS propõe um modelo em que o DSO seria criado dentro das distribuidoras, com poder de controlar e despachar os REDs, inclusive a GD. Esse arranjo, além de não refletir as boas práticas internacionais, representa um retrocesso em termos de neutralidade de operação, liberdade do consumidor e abertura à inovação.

É preciso reforçar: a GD brasileira cresceu sob um marco regulatório definido, com regras claras, inclusive com incentivos públicos previstos. Tratá-la agora como um “monstro” que precisa ser domado, como foi mencionado no recente debate técnico, demonstra uma visão reativa e desequilibrada.

A GD não é vilã. Quando bem integrada, com sinalização econômica adequada, transparência e tecnologia, ela é parte da solução para um sistema mais limpo, seguro e resiliente. O desafio real não está em conter a GD, mas em modernizar a rede, atualizar a regulação e alinhar os incentivos de forma justa e eficiente.

Portanto, a criação de um DSO deve ser precedida por:

  • Uma definição clara de papéis e responsabilidades institucionais, com a separação funcional entre operação e comercialização;
  • A constituição de um ambiente de governança neutro, que permita o controle e a coordenação dos REDs sem favorecer agentes integrados verticalmente;
  • A regulamentação baseada em dados e evidências técnicas, com ampla participação dos stakeholders — incluindo representantes da sociedade civil, consumidores e geradores distribuídos;
  • O alinhamento com os princípios da livre concorrência, inovação tecnológica e eficiência econômica.

A modernização da rede básica e da distribuição não se faz por meio de centralização disfarçada. O futuro do setor elétrico brasileiro deve estar ancorado na construção de um sistema mais aberto, transparente e resiliente — e não na tentativa de “domar” a geração distribuída por meio de estruturas institucionais questionáveis.

As opiniões e informações expressas são de exclusiva responsabilidade do autor e não obrigatoriamente representam a posição oficial do Canal Solar.

Foto de Marina Meyer Falcão
Marina Meyer Falcão
Presidente da Comissão de Direito de Energia da OAB /MG. Professora da PUC em Pós Graduação de Energia Solar. Secretária de Assuntos Regulatórios e Diretora Jurídica no INEL. Advogada especialista em Direito de Energia. Diretora Jurídica da Energy Global Solution. Co-Autora de três livros em Direito de Energia. Membro da Câmara de Energia, Petróleo e Gás da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais. Ex-superintendente de Políticas Energéticas do Estado de Minas Gerais.

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